Mais um leque de personagens curiosos e tramas de realismo fantástico de Aguinaldo Silva, dividindo a autoria com Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares. A novela Fera Ferida estreava há 28 anos, em 15 de novembro de 1993.

Desta vez, o ponto de partida foram personagens e tramas do escritor Lima Barreto (1881-1922), compondo um painel curioso e inteligente ao adaptá-los para televisão.

Listo 10 curiosidades envolvendo a novela. Confira:

1 – Lima Barreto

De sua obra, serviram como base os romances e contos “Clara dos Anjos”, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, “Nova Califórnia”, “O Homem que Sabia Javanês” e “Numa e a Ninfa”. Nova Califórnia foi – inclusive – o primeiro título pensando para a novela.

Os autores também homenagearam Lima Barreto por meio do poeta Afonso Henriques, personagem de Otávio Augusto, cujo nome completo era Afonso Henriques de Lima Barreto, homônimo do homenageado. Além disso, havia uma foto de Lima Barreto com a faixa presidencial no gabinete do prefeito de Tubiacanga.

Também os nomes das ruas da cidade faziam alusão aos romances e personagens da obra do escritor, como Praça Policarpo Quaresma, Rua Gonzaga de Sá, Rua Escrivão Isaías Caminha, etc. O próprio nome da cidade da trama – Tubiacanga – não é criação dos autores da novela, mas de Lima Barreto: está no conto “Nova Califórnia”.

2 – Personagens que não funcionaram

Aguinaldo Silva considerou que os personagens Ivonete (Julciléa Telles) e Vivaldo (André Gonçalves), respectivamente mulher e filho mais velho do coveiro Orestes Fronteira (Cláudio Marzo), não funcionaram como esperava. Foi então criado um incêndio na casa da família, do qual escaparam somente Orestes e o filho menor, Romãozinho (Patrick de Oliveira).

Ao livro “Autores, Histórias da Teledramaturgia” (do Projeto Memória Globo), Aguinaldo declarou: “Um núcleo que eu odiava, no qual nada dava certo. Só o Cláudio Marzo e um menino, o Patrick de Oliveira, funcionavam. Fiz um incêndio e só os dois sobreviveram.”

A personagem Clara dos Anjos, uma das mais famosos da obra de Lima Barreto, foi vivida na novela pela estreante atriz Érika Rosa. Seu desempenho foi muito criticado, levando à saída de sua personagem da trama cerca de dois meses antes do final da novela. A atriz nunca mais foi vista na televisão.

3 – Crítica política

Os autores incorporaram à novela fatos do cenário político vigente. O escândalo dos “anões do orçamento”, alardeados pelo noticiário nacional na época (1993-1994), apareceram por meio dos personagens Major Bentes (Lima Duarte), Professor Praxedes (Juca de Oliveira), Numa Pompílio de Castro (Hugo Carvana) e Demóstenes (José Wilker) – eles eram os anões de Tubiacanga.

A atriz Perla Menescal (Cláudia Alencar) foi sem calcinha receber as chaves da cidade das mãos do prefeito, com quem mantinha um caso amoroso – uma paródia do episódio envolvendo a modelo Lílian Ramos, fotografada sem a peça íntima ao lado do então presidente Itamar Franco no Sambódromo do Rio de Janeiro durante o carnaval de 1994.

Também o comportamento, visual, falas e gestos de Áureo Poente (Cláudio Fontana) quando ingressa na política (ao final), o que remetia ao ex-presidente Fernando Collor, que renunciara no ano anterior.

4 – Camisas Flamel

As camisas sem gola de Raimundo Flamel (Edson Celulari), listradas e de manga comprida, viraram moda. Inspiradas no filme Lawrence da Arábia (1962), ficaram popularmente conhecidas “camisas Flamel”.

5 – Ilka Tibiriçá

Cássia Kiss interpretou um de seus melhores tipos na televisão e uma das mais queridas de Fera Ferida: Ilka Tibiriçá, uma personagem engraçada, sensível e muito ansiosa. Os trejeitos, o visual à la anos sessenta e sua fixação no filme O Candelabro Italiano (1962) deram um toque especial, embalado pela canção “Al Di Lá”, tema do filme e da personagem.

Foi a própria Cássia quem criou os gestos e a maneira de falar peculiares de Ilka, como a frase “Hmmm… Lindinha queridinha da titia!“, com uma entonação engraçada, referindo-se à sobrinha Linda Inês (Giulia Gam). O figurino da personagem foi inspirado no estilo de Jacqueline Kennedy, ex-primeira-dama dos Estados Unidos na década de 1960.

6 – Impotência x pratos exóticos

As tentativas de Ilka Tibiriçá em ajudar o amado Ataliba Timbó (Paulo Gorgulho) com seu problema de impotência sexual, por meio de receitas de pratos exóticos e afrodisíacos, foi uma atração à parte. As receitas de Ilka fizeram sucesso entre os telespectadores. A emissora recebia inúmeras cartas pedindo que os capítulos em que a personagem fazia os pratos afrodisíacos fossem reprisados para que as receitas pudessem ser anotadas.

Os pratos eram adaptações de receitas verdadeiras, extraídas do livro “Comer e Amar”, escrito em 1986 pela empresária martiniquenha Lauretta Marie Josephe e pelo jornalista Okky de Souza. A única receita que não foi retirada do livro era o famoso “sarapatel das delícias”. Esse prato foi uma sugestão do veterinário Edson Ramos da Siqueira, então professor da UNESP de Botucatu.

Além do sarapatel, outras receitas famosas de Ilka Tibiriçá foram mexilhões com abóbora-menina, maionese de ovos de codorna com codornas assadas e frango com gengibre. Depois de gravadas as cenas, elenco e produção se fartavam com os quitutes.

7 – Realismo fantástico

Esteve presente nos poderes de Raimundo Flamel (Edson Celulari) em transformar ossos humanos em ouro; na personagem Camila (Cláudia Ohana), que entrava em sono profundo e dormia anos a fio; no Coveiro Orestes (Cláudio Marzo), que falava com os mortos e sabia os segredos das famílias de Tubiacanga; e nas cenas de amor de Demóstenes e Rubra Rosa (José Wilker e Susana Vieira), que inflamavam tudo ao redor – o que remete à personagem Marcina, de Sônia Braga, da novela Saramandaia (1976), de Dias Gomes, que ardia em febre, literalmente, quando excitada.

8 – Efeitos especiais

A equipe de efeitos especiais fez a personagem Camila (Cláudia Ohana) levitar. Para tanto, foram necessários uma prancha de fibra com o molde do corpo da atriz, uma dublê e um estúdio com cromaqui. Camila ainda dormia rodeada de pássaros, de várias espécies. O “psicólogo de animais” Antonio Jayro Fagundes foi recrutado para posicionar as aves no estúdio. As cenas eram finalizadas em computador.

Sob a coordenação de Eduardo Halfen, os efeitos especiais em computador inseriram imagens da Chapada dos Guimarães no entorno de Tubiacanga, assim como uma cachoeira de Brasília colocada entre duas montanhas da cidade cenográfica.

9 – Os cenários

Fera Ferida teve a maior cidade cenográfica construída até então – a fictícia Tubiacanga -, erguida em 45 dias, em Jacarepaguá (no terreno que posteriormente abrigaria o Projac, depois Estúdios Globo). Com trinta mil metros quadrados, incluía um rio artificial sobre uma ponte de ferro, ancoradouro, praças, jardins, cemitério, uma pedreira e dez prédios em tamanho natural.

O casarão de Raimundo Flamel era uma construção gótica, sombria e misteriosa, características perfeitas para criar a atmosfera de mistério que envolvia o personagem.

A tecelagem de Linda Inês contava com quatro teares artesanais de mais de cem anos, encontrados na cidade de Carmo do Rio Claro, em Minas Gerais, além de duas rocas e cem ovelhas da raça corriedale, capazes de produzir, em média, cinco quilos de lã. O professor Edson Ramos da Siqueira, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (UNESP) de Botucatu, em São Paulo, prestou consultoria à TV Globo no trato com os animais.

As cenas de Linda Inês no curral eram gravadas em Volta Redonda (no estado do Rio), para onde a produção enviou cerca de 400 ovelhas.

A novela também contou com cenas rodadas em Chaumont, na França, onde ficava o castelo do mestre de Raimundo Flamel (personagem de Ivan de Albuquerque). No Vale do Loire foram gravadas as cenas finais da história, em que Linda Inês e Flamel, apaixonados, terminam juntos.

10 – Estreantes

Primeira novela na Globo do ator Murilo Benício e das atrizes Camila Pitanga e Carolina Dieckmann (egressas da minissérie Sex Appeal). A pedido do diretor Paulo Ubiratan, Carolina Dieckmann teve de deixar a novela antes do final. O diretor escalou a atriz para viver uma personagem importante na novela Tropicaliente (1994) e pediu que Aguinaldo Silva a liberasse.

Por sua atuação, Murilo Benício foi eleito pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) a revelação masculina na televisão em 1994. José Wilker foi premiado como melhor ator do ano.

AQUI tem tudo sobre Fera Ferida: a trama, personagens e seus intérpretes, a trilha sonora e mais curiosidades.

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Desde criança, Nilson Xavier é um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: no ano de 2000, lançou o site Teledramaturgia, cuja repercussão o levou a publicar, em 2007, o Almanaque da Telenovela Brasileira. Leia todos os textos do autor